(Continuação)
Uma educação sexual e social verdadeira se faz urgente em todas as escolas, desde o jardim da infância, desde antes, talvez, desde as creches. E aqui quero lembrar o que o escritor francês Roger Garaudy contou em seu livro O Ocidente é um Acidente, publicado no Brasil na década de 1970. Trata-se da educação que um índio peruano costuma dar ao seu filho quando ele chega à chamada “idade da razão”, por volta dos 7 anos. Leva-o a um milharal e diz: “Para que o milho nasça, é preciso que haja terra, água (a chuva) e a luz do sol. Então, ao colhermos o milho, devemos agradecer à terra, à água e ao sol.” Depois, apresenta-o a outro indiozinho do seu tamanho e diz: “Ele é tu mesmo, só com outra cara.” Assim, aprendemos, com esse índio peruano, que o respeito à natureza, a sociabilidade e a parceria são coisas simples e claras como um dia de sol e um milharal.
Garaudy, em outro livro visionário – Liberação da Mulher, Liberação Humana –, nos conta a experiência exemplar e única, hoje esquecida, de uma primeira-ministra portuguesa, Maria de Lourdes Pintasilgo, que exerceu o poder por apenas cinco meses, mas deixou a marca da esperança num outro tipo de revolução. E Portugal estava saindo de uma ditadura de 48 anos e em cuja Constituição de 1933 em seu artigo 5º se dizia: :« A igualdade perante a lei envolve o direito de ser provido nos cargos públicos, conforme a capacidade ou serviços prestados, e a negação de qualquer privilégio de nascimento, nobreza, título nobiliárquico, sexo, ou condição social, salvas, quanto à mulher, as diferenças resultantes da sua natureza e do bem da família e, quanto aos encargos ou vantagens dos cidadãos, as impostas pela diversidade das circunstâncias ou pela natureza das coisas» Ou seja “Se todos são iguais perante a lei, as mulheres não podem sê-lo por causa da diferença de natureza e do interesse da família”! Maria de Lourdes Pintasilgo, quatro anos depois da “revolução dos cravos”,encontrou uma nova Constituição onde não havia já qualquer sombra de discriminação, mas uma mentalidade popular ainda deformada por quase meio século de ditadura. Tentou uma “feminização” da política ao orientar sua atenção, em primeiro lugar, para as camadas mais carentes do povo, para dois milhões de portugueses que, como diz Garaudy, “não podiam reclamar direito algum nem tinham poder nenhum de impor suas reivindicações”. Pintasilgo julgou mais urgente beneficiar “as pessoas idosas, os excepcionais e as crianças” do que negociar com as grandes forças organizadas que sabem reivindicar e pressionar: os partidos políticos, as igrejas, os industriais, os sindicatos e os agricultores. Ela pensou antes nos seres humanos, e com isso “dessacralizou o poder e seu ritual”.
Em seu discurso de posse, a Primeira-Ministra declarou: “Prestaremos atenção aos silêncios dos que em nossa sociedade continuam sem voz.” É de mulheres como essa que precisam os governos. Neste novo momento histórico, neste triste despertar do pesadelo em que nos debatemos, precisamos dar voz àquelas que sofrem a violência, mas também propiciar-lhes uma redobrada proteção, multiplicando, por exemplo, os abrigos de mulheres espancadas, que entre nós são tão escassos. Lembro de uma visita que fiz, nos Estados Unidos, a um dos 13 abrigos que, desde o final dos anos 1980, a região de Nova Jersey já possuía. Infelizmente, nem assim, como sabemos, as norte-americanas estão melhor protegidas do que nós. Torna-se urgente, lá como aqui, e em todo o mundo, multiplicar os Centros de Atendimento à Mulher, criar mais instituições que orientem e protejam as vítimas de espancamento, de ameaças, para que junto com seus filhos possam mudar o quadro dramático de suas vidas. Precisamos criar uma forma de atingir a consciência das mulheres, para que aprendam a detectar os sinais da violência nos pequenos constrangimentos, nas mínimas restrições de suas liberdades. Precisamos alertá-las contra os parceiros aparentemente muito apaixonados, mas ciumentos, que não as deixam fazer isto ou aquilo, que não respeitam suas opiniões ou suas vontades, e que podem têlas conquistado com belas palavras, com um zelo exagerado ou falsos cuidados. Elas precisam ficar atentas aos sinais da violência, precisam ter coragem de buscar ajuda logo após um primeiro insulto, ou um primeiro tapa, sem esperar, para reagir, o espancamento e a tortura. Só assim o mal poderá ser cortado pela raiz.
No caso dos estupros, no entanto, não basta que os estupradores sejam presos ou punidos. Eles são seres humanos doentes, que precisam de cuidados especiais e de controle porque constituem ameaças permanentes. Precisam, portanto, ser tratados e reeducados, mas, principalmente, precisam ser monitorados eletronicamente, como os presos perigosos em liberdade condicional. E as delegacias deveriam contar com a colaboração de todos os cidadãos, que diante da violência praticada contra qualquer mulher, ou criança, tivessem a coragem de denunciar.
Acabar com a violência é tarefa de todos.
Acima de tudo, precisamos criticar o androcentrismo, que gera a discriminação e a violência, para sermos capazes de “recolocar o mundo na posição certa”, como disse Sojourner Truth, a exescrava analfabeta. E nossos parceiros homens precisam ter a coragem de reconhecer, com Garaudy, que., na própria cultura, “a noção de racionalidade deve ser questionada como parcial, até aqui exclusivamente masculina, isto é, constrangedora, reducionista e sistemática”. Acrescentemos, então, o que diz Riane Eisler: “Educadores progressistas começam, pela primeira vez na história da educação moderna, a abordar a educação para amar – ou, como às vezes é chamada, a educação para a alfabetização emocional…” para que os estudantes (de qualquer idade) aprendam a viver em parceria e não em competição ou submetidos à qualquer tipo de dominação. “Elevar o nível da competência emocional e social das crianças” precisa fazer parte da nova formação.
Que se ensine a compaixão em todas as escolas!
Assim, será criada uma nova moral afetiva, que evitará comportamentos sexualmente abusivos e promoverá o respeito e a descoberta do outro, do diferente, como alguém que nos ajuda a crescer e a compreendermos melhor a nós mesmos. E a sexualidade reprimida como pecaminosa durante tantos séculos, pelos puritanos, ou promovida e explorada como escabrosa, pelos libertinos, poderá, enfim, desabrochar como fonte de alegria e de prazer que saberemos, sem medo e sem culpa, proporcionar uns aos outros.
Precisamos acreditar nessa mutação. Repito, com Stéphane Hessel, – em seu panfleto Indignai-vos! –, o verso de Apollinaire: ”Como a esperança é violenta.” Só essa violência quero admitir e partilhar com todas as mulheres e todos os homens de um mundo melhor, a violência da Esperança.
8 de março de 2013
(Conclui amanhã com uma homenagem a todas as mulheres do mundo, nas figuras de três brasileiras que iluminaram o nosso Feminismo).
Filed under: Ciências humanas, Ciências Sociais. Tagged: direitos humanos, mulheres - a violência continua, rachel gutiérrez